Publicado em 15/05/2018 16:54 Última edição 15/05/2018 16:54

Deveríamos pagar mais imposto

Fonte: Folha de S.Paulo

Deveríamos pagar mais imposto

Bruno Carazza










O sistema de deduções e isenções do imposto de renda de pessoas físicas amplia a desigualdade no Brasil

Não fui eu, nem Deus, não foi você, nem foi ninguém
Tudo o que se ganha nessa vida é pra perder
Tem que acontecer, tem que ser assim
Nada permanece inalterado até o fim

Se ninguém tem culpa não se tem condenação
Se o que ficou do grande amor é solidão
Se um vai perder, outro vai ganhar
É assim que eu vejo a vida, e ninguém vai mudar
 (“Tem que Acontecer”. Sérgio Sampaio)
 
Saiu na última piauí um dos melhores textos que li recentemente sobre a sociedade brasileira. Tomando como mote uma pichação que se espalhou pela Zona Sul do Rio, o cineasta João Moreira Salles faz uma análise melancólica sobre como recorrentemente nos eximimos da responsabilidade coletiva por sermos quem nos tornamos.

O “não fui eu” pintado nos muros e tapumes cariocas tem potencial para entrar no rol das expressões que nos representam, como a lei de Gérson, o “você sabe com quem está falando?”, de Roberto Damatta, ou “o país da meia-entrada“, de Marcos Lisboa e Zeina Latif. A frase não é mera declaração de inocência. Significa também tirar o corpo fora, atribuir ao outro (ou ao Estado ou aos políticos) a responsabilidade pelas nossas mazelas sociais, é não se sentir cúmplice das tragédias que nos rodeiam. Representa o desinteresse pelos problemas comuns – é, em última análise, a negação do sentido de coletividade e da própria política.

Na lógica do “não fui eu” todos nós, ditos cidadãos de bem, lavamos as mãos sobre o país desigual e extremamente violento em que vivemos. Jogamos a culpa nos políticos corruptos, ou no nosso passado escravocrata. Criticamos o governo por gastar mal, mas justificamos com convicção nossos próprios privilégios.

Não importa se coxinhas (“a culpa não é minha, eu votei no Aécio”), petralhas (“não reconheço governo golpista”) ou isentões, todos gritamos, de olhos fechados para a realidade que nos cerca: “não fui eu”.

Nesse último fim de semana eu fiz a minha declaração de imposto de renda. E ainda afetado pelo artigo, pensei no quanto de “não fui eu” deve ter sido proferido enquanto dezenas de milhões de pessoas juntavam documentos para acertar as suas contas com o leão. Afinal, quem paga tanto imposto não pode ser culpado por um Estado tão ineficiente e corrupto.

A maioria de nós, que nos autoproclamamos classe média (embora quem ganhe acima de R$ 5.700 por mês pertença aos 5% mais ricos da população), reclama dos altos impostos. E malandramente fingimos não saber que, para o país se tornar mais justo, deveríamos pagar muito mais.

O sistema tributário é uma das grandes máquinas de criação de desigualdade no Brasil. Nossa carga de impostos é de país desenvolvido (32% do PIB, contra a média de 34,3% na OCDE), mas nossa estrutura tributária é horrivelmente iníqua: taxamos muito o consumo e a massa salarial, e bem menos a renda e os lucros. O resultado disso é que penalizamos os assalariados e pobres (cuja maior parte da renda é gasta no consumo), enquanto aliviamos a barra dos mais ricos. Nos países desenvolvidos, ao contrário, o peso maior está na renda e nos lucros.

Voltando à minha declaração do imposto de renda, uma inovação dos técnicos da Receita Federal oferece um bom retrato de como o “não fui eu” funciona no sistema tributário. Trata-se do cálculo da alíquota efetiva, a relação entre o imposto devido e os rendimentos tributáveis, que aparece no canto inferior esquerdo da tela da declaração.

Grosso modo, a alíquota efetiva calcula o quanto de imposto de renda pagamos sobre nossos rendimentos, descontadas as deduções. No meu caso específico, abatidas as despesas com a escola dos meus filhos, os gastos com plano de saúde e consultas médicas e mais a previdência oficial e complementar, a alíquota efetiva ficou em 16,68% – bem abaixo da alíquota máxima, que é de 27,5%.

Muitos dirão que isenções e deduções do imposto de renda são um mecanismo justo para um Estado que oferece tão pouco para os cidadãos. É aí que mora o pensamento do “não fui eu”.

Ao longo das últimas décadas, a chamada “classe média” brasileira passou a achar normal pagar duas ou três vezes pelos mesmos serviços. Pagamos um sistema de educação pública por meio de tributos, mas matriculamos nossos filhos em escolas particulares. E como essas ainda são insuficientes, recorremos a extras como reforço escolar, aula de inglês, esportes…

Na saúde acontece o mesmo. O SUS é ruim? Contratamos um plano de saúde. Mas quando o médico só atende pelo convênio daqui a dois meses, uma consulta particular garante vaga para o dia seguinte. Ou seja, pagamos três vezes pelo mesmo serviço devido a uma combinação de sistema público ineficiente com falhas na regulação e na fiscalização do setor privado.

Como solução, em vez de cobrar serviços públicos de melhor qualidade, exigimos do Estado compensações por termos de recorrer ao setor privado em razão de sua falência.


As classes mais altas são eficientes em aprovar leis que lhes concedam isenções e deduções para pagarem menos imposto de renda sobre pessoas físicas. A linha indica que, depois de atingir um mínimo de descontos na faixa de renda de 2 a 3 salários mínimos por mês, em geral quanto mais alta a renda, maior a sua proteção contra as mordidas do leão.

Especialmente neste ano de eleição onde a maioria de nós quer renovação e mudança, é chegada a hora de buscarmos um sistema tributário mais justo. Isso passa pelo combate à sonegação, pela redução drástica dos subsídios e incentivos fiscais, mas também por mais progressividade dos tributos.

Faz-se urgente, portanto, combater o “não fui eu” de nossa pseudo classe média que abate despesas de médicos, dentistas, fisioterapeutas e psicólogos do imposto de renda – benefício que atinge uns poucos milhares, enquanto a imensa maioria da população simplesmente não tem dinheiro para esses “luxos”. E o que dizer da educação privada: permitir a dedução de despesas com esses serviços não desequilibra o jogo em favor de quem já tem mais renda?

Deduções e isenções no imposto de renda são vantagens criadas para quem está no topo da pirâmide de renda, e acabam minando o princípio da progressividade, segundo o qual quem ganha mais deve pagar proporcionalmente mais impostos.

Permitir o desconto de tais despesas dos mais ricos representa, de duas uma: ou menos dinheiro para investir em serviços melhores para a população, em especial os mais pobres; ou mais tributos sobre o consumo e os salários, prejudicando justamente a camada de baixo da pirâmide de renda.

Na hora de fazer a sua declaração anual do IRPF, portanto, deixe de lado o “não fui eu” e admita que, pelo bem do país e de si próprio, você deveria pagar mais imposto.